VISÃO GERAL DE TIAGO
Tradicionalmente,
a carta de Tiago tem sido lida como uma coleção algo aleatória de instruções
éticas para os cristãos em geral. Contudo, provavelmente há mais ordem nessa
carta do que parece à primeira vista. Seus principais interesses são delineados
em 1.2-18, que basicamente assume a forma de uma consolação aos cristãos no
exílio: as provações podem ou testar para produzir o bem (v. 2-4,12) ou tentar
ao mal (v. 13-15); a sabedoria é a dádiva de Deus para que suportemos e tiremos
proveito das provações (v. 5-8,16-18); aos olhos de Deus, a posição elevada do
rico e a inferior do pobre são invertidas (v. 9-11).
A
seção seguinte (1.19—2.26) é dividida em três partes, unidas pela preocupação
de Tiago quanto a que seus ouvintes coloquem em prática a sua fé — no nível
bastante prático da fala e da atenção aos pobres. Ele começa denunciando as
contendas na comunidade, insistindo em que as pessoas realmente façam o que a
palavra diz, não apenas falem sobre isso (1.19-25). O autor aplica isso
especialmente à língua e ao cuidar dos pobres (v. 26,27), e então às atitudes
erradas em relação aos ricos e aos pobres (2.1-13). Ele conclui a seção onde
começou, insistindo em que a fé precisa ser acompanhada pelas obras apropriadas
a ela (v. 14-26).
A
seção seguinte (3.1—4.12) retorna ao assunto da discórdia dentro das
comunidades cristãs. O autor começa tratando da língua, essa eterna criança
birrenta (3.1-12; cf. 1.26), visando nesse caso particularmente os mestres da
igreja. Voltando ao problema da verdadeira sabedoria, que conduz à paz
(3.13-18; cf. 1.5-8), Tiago então ataca diretamente as discórdias entre eles
(4.1-12).
Enquanto a primeira menção à
sabedoria (1.5-8) é seguida de uma bênção aos pobres e advertências aos ricos,
aqui, em ordem invertida, há uma palavra dupla aos ricos (4.13-17; 5.1-6) e um
chamado a que os pobres que passam por aflição demonstrem paciência (5.7-11). A
carta termina com uma advertência contra os juramentos (v. 12), um chamado à
oração — especialmente a oração pelos doentes (v. 13-18) — e uma exortação à
correção dos desviados (v. 19,20).
ORIENTAÇÕES PARA A LEITURA DE
TIAGO
A carta de Tiago, há que
admitir, é penosa de ler do começo ao fim; seu estilo é de começos e paradas, guinadas e
reviravoltas. Mas além dos fios temáticos que dão coesão à carta, observados acima, há
várias outras questões que ajudarão o leitor a obter uma compreensão melhor.
Em primeiro
lugar, quanto ao conteúdo, você perceberá que se trata de uma carta variada,
todos os temas visando especificamente o comportamento cristão, não se tratando
de apresentação doutrinária. Ela inclui um bom número de ditos e aforismos que
remetem à sabedoria do Antigo Testamento por um lado e aos ensinamentos de Jesus
por outro. Isto é, assim como os Evangelhos Sinóticos muitas vezes apresentam o
ensino de Jesus na forma de ditos — que às vezes ecoam a sabedoria judaica —, o
mesmo ocorre em Tiago. Isso é visto tanto na ênfase do autor na sabedoria em si
quanto na natureza frequentemente aforística
do que ele diz. Nessa linha, você também deverá observar os ecos
frequentes dos ensinamentos de Jesus (p. ex., 1.5,6; 2.8; 5.9,12). Como em
todos os escritos da sabedoria judaica (v. "Os Escritos de Israel na
história bíblica", p. 141),
o interesse aqui não é doutrinário ou lógico, mas
prático; o teste da veracidade do que se diz está em seu funcionamento na
realidade da vida cotidiana.
Em segundo lugar, quanto ao aspecto formal da carta,
Tiago apresenta de certa forma um tom de sermão. Enquanto lê a carta, observe
os vários recursos retóricos que ele emprega, especialmente alguns que refletem
a diatribe greco-romana (v. "Orientações para a leitura de Romanos",
p. 376) — o tratamento direto
("meus [amados]
irmãos", 14x), as perguntas retóricas (p. ex.,Tg 2.3-7,14,21;
3.11,12,13; 4.1,5) e o uso de um interlocutor
imaginário (2.18-20; 4.,12,13,15).
Assim, o que Tiago faz da tradição da sabedoria não tem qualidade proverbial,
mas de sermão; ele espera persuadir os leitores, visando à mudança na maneira
como o povo de Deus vive em comunidade uns com os outros.
Em terceiro lugar, não ceda ao
hábito, o que é fácil nesse caso, de ler Tiago como se a carta se direcionasse
a cristãos individuais e tratasse do relacionamento individual deles com Deus e
com os outros. Nada poderia estar mais longe dos interesses de Tiago. Desde o
início, sua paixão é pela vida na comunidade cristã. Embora seja verdade que
cada um
precisa assumir sua responsabilidade individual para que a comunidade seja
saudável, o interesse da epístola não é tanto pela piedade pessoal quanto pela
saúde das comunidades. Deixar de perceber esse aspecto é deixar de perceber o
interesse que permeia essa carta do começo ao fim.
Finalmente,
é preciso ler as seções sobre os ricos e os pobres com cuidado (1.9-11,27;
2.1-13; 4.13—5.6), já que não é fácil determinar se ambos os grupos aqui
pertencem à comunidade cristã. Seja como for, Tiago está decididamente — assim
como toda a Bíblia — do lado dos pobres. Os ricos são consistentemente
censurados
e julgados, não por causa de sua riqueza em si, mas porque ela os levou a viver
sem levar Deus em consideração e assim abusar dos desprovidos com quem Deus se
importa.
UMA CAMINHADA POR TIAGO
1.1 - 18 Saudação
e introdução aos temas da carta
Aqui Tiago introduz a maioria
dos seus principais assuntos. Observe como, depois de uma típica saudação de
carta (v. 1), ele passa imediatamente à questão das provações, exortando-os à
alegria, porque as provações geram a perseverança e levam à maturidade (v. 2-4;
introduzindo 5.7-11). Em seguida, ele os exorta a que orem por sabedoria (1.5;
introduzindo 3.13-18), insistindo em que a oração precisa ser acompanhada pela
fé para ser eficaz (1.6-8; introduzindo 5.13-18). Isso leva ao assunto
principal do autor, a questão dos pobres, a quem oferece esperança, e dos
ricos, que ele adverte (1.9-11; introduzindo 1.27—2.13; 4.13—5.6); observe aqui
os ecos de Isaías 40.6-8,
versículos que também estão num contexto de conforto aos exilados. Voltando à
questão das provações e testes, ele observa que a provação pode passar à tentação (uma única palavra grega
designa ambas as ideias), pela
qual não se pode culpar a Deus (Tg 1.12-15), concluindo que Deus, antes,
concede apenas boas dádivas, especialmente a dádiva de nos "ger[ar] pela
palavra da verdade" (v. 16-18).
1.19 - 2.26 Colocando
a fé em prática
Enquanto
você lê essa seção, atente para como o seu conteúdo dá a ela alguma coesão.
Começando com a raiva e com a língua, Tiago exorta os leitores a viver a
palavra que eles ouvem, especialmente com respeito à língua e a ser caridosos
para com os pobres (1.19-27). A caridade para com os pobres significa não
mostrar favoritismo pelos ricos; fazer isso é pecado, c fazer distinção de
pessoas — não demonstrar misericórdia - significa se colocar sob julgamento
(2.1-13). Finalmente, ele ataca aqueles que entendem a fé como mero assentimento
verbal às
doutrinas nas quais se crê; falar sobre a fé sem se preocupar concretamente
com os pobres
— isto é, a fé sem ação — é o mesmo que estar morto (v. 14-26).
3.1 - 4.12 Discórdia
na comunidade
Você
pode reler 1.19-27 antes de ler essa seção. Aqui Tiago se volta à grande
questão da discórdia nas comunidades cristãs, começando com o que se tornou sua
exposição clássica sobre o uso e o abuso da língua (3.1-12); a língua é
"um mal que não se pode conter; está cheia de veneno mortal" (v. 8).
Você consegue se identificar com isso? Semelhantemente à admoestação
anterior
contra "a fé sem obras", aqui ele está preocupado com a questão de a
mesma língua ser usada para adorar a Deus e para amaldiçoar os outros. Isso por
sua vez leva diretamente ao retorno do tema da sabedoria (3.13-18), o autor
contrastando a sabedoria divina com a falsa e insistindo em que a verdadeira
sabedoria consiste em ser puro e amante da paz.
Observe
que essas duas questões (a língua e a sabedoria) servem, juntas, para
introduzir o tema crucial das discórdias na comunidade cristã (4.1-12). Tiago
expõe, respectivamente, as raízes pecaminosas das discórdias (v. 1-3), sua
natureza mundana (v. 4,5) e a necessidade da humildade (v. 6-10), retornando no
final aos abusos da língua, que incluem o ato de julgar os outros (v. 11,12).
4.13 - 5.11 Aos
ricos e aos pobres
Observe
que essa é a terceira vez que Tiago trata da questão dos ricos e dos pobres,
sugerindo que se trata de uma questão importante para o autor. Embora não
possamos ter certeza, ele parece se dirigir primeiro aos ricos cristãos, que
lidam com seus negócios de uma forma mundana (4.13-17). A isso se segue uma
denúncia áspera dos ricos proprietários
de terras (aparentemente não cristãos), que abusam dos seus trabalhadores, não
pagando o que lhes devem (5.1-6).
Finalmente,
voltando à questão das provações, provavelmente se dirigindo aos pobres em
aflição, ele mais uma vez exorta à perseverança (v. 7-11; cf. 1.3).
5.12
- 20 Exortações finais
As
exortações finais parecem estar ligadas de maneira mais vaga aos temas que as
precedem. O autor começa falando sobre os juramentos (v. 12), claramente
ecoando o ensinamento de Jesus (Mt 5.33-37); ele então se volta à oração e à fé
(Tg 5.13-18; cf. 1.6-8), demonstrando uma preocupação especial pelos pobres (os
"doente[s]" nesse caso). Ele conclui com uma bênção sobre aqueles que
reconduzem os
desviados (5.19,20). Observe a ausência de qualquer conclusão típica de carta.
Tiago
é a contraparte do
Novo Testamento da tradição judaica de sabedoria, agora à luz dos ensinamentos
de Jesus. Embora às vezes se leia Tiago em contraste com Paulo, na verdade
ambos estão em perfeito acordo quanto à principal mensagem de Tiago ao longo da
carta: a primeira coisa que se deve fazer com a fé é viver segundo ela (cf. Gl
5.6).
Extraído do livro "Como ler a Bíblia Livor por Livro", Gordon Fee e Douglas Stuart, Editora Vida Nova, págs. 472-476.
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