segunda-feira, 30 de junho de 2014

Como ler a Epístola de Tiago

VISÃO GERAL DE TIAGO

Tradicionalmente, a carta de Tiago tem sido lida como uma co­leção algo aleatória de instruções éticas para os cristãos em geral. Contudo, provavelmente há mais ordem nessa carta do que parece à primeira vista. Seus principais interesses são delineados em 1.2-18, que basicamente assume a forma de uma consolação aos cristãos no exílio: as provações podem ou testar para produzir o bem (v. 2-4,12) ou tentar ao mal (v. 13-15); a sabedoria é a dádiva de Deus para que suportemos e tiremos proveito das provações (v. 5-8,16-18); aos olhos de Deus, a posição elevada do rico e a inferior do pobre são invertidas (v. 9-11).
A seção seguinte (1.19—2.26) é dividida em três partes, unidas pela preocupação de Tiago quanto a que seus ouvintes coloquem em prática a sua fé — no nível bastante prático da fala e da atenção aos pobres. Ele começa denunciando as contendas na comunidade, insis­tindo em que as pessoas realmente façam o que a palavra diz, não apenas falem sobre isso (1.19-25). O autor aplica isso especialmente à língua e ao cuidar dos pobres (v. 26,27), e então às atitudes erradas em relação aos ricos e aos pobres (2.1-13). Ele conclui a seção onde começou, insistindo em que a fé precisa ser acompanhada pelas obras apropriadas a ela (v. 14-26).
A seção seguinte (3.1—4.12) retorna ao assunto da discórdia den­tro das comunidades cristãs. O autor começa tratando da língua, essa eterna criança birrenta (3.1-12; cf. 1.26), visando nesse caso particu­larmente os mestres da igreja. Voltando ao problema da verdadeira sabedoria, que conduz à paz (3.13-18; cf. 1.5-8), Tiago então ataca diretamente as discórdias entre eles (4.1-12).
Enquanto a primeira menção à sabedoria (1.5-8) é seguida de uma bênção aos pobres e advertências aos ricos, aqui, em ordem invertida, há uma palavra dupla aos ricos (4.13-17; 5.1-6) e um chamado a que os pobres que passam por aflição demonstrem paciência (5.7-11). A carta termina com uma advertência contra os juramentos (v. 12), um chamado à oração — especialmente a oração pelos doentes (v. 13-18) — e uma exortação à correção dos desviados (v. 19,20).



ORIENTAÇÕES PARA A LEITURA DE TIAGO

A carta de Tiago, há que admitir, é penosa de ler do começo ao fim; seu estilo é de começos e paradas, guinadas e reviravoltas. Mas além dos fios temáticos que dão coesão à carta, observados acima, há várias outras questões que ajudarão o leitor a obter uma compreensão melhor.
Em primeiro lugar, quanto ao conteúdo, você perceberá que se tra­ta de uma carta variada, todos os temas visando especificamente o comportamento cristão, não se tratando de apresentação doutrinária. Ela inclui um bom número de ditos e aforismos que remetem à sabe­doria do Antigo Testamento por um lado e aos ensinamentos de Jesus por outro. Isto é, assim como os Evangelhos Sinóticos muitas vezes apresentam o ensino de Jesus na forma de ditos — que às vezes ecoam a sabedoria judaica —, o mesmo ocorre em Tiago. Isso é visto tanto na ênfase do autor na sabedoria em si quanto na natureza frequen­temente aforística do que ele diz. Nessa linha, você também deverá observar os ecos frequentes dos ensinamentos de Jesus (p. ex., 1.5,6; 2.8; 5.9,12). Como em todos os escritos da sabedoria judaica (v. "Os Escritos de Israel na história bíblica", p. 141), o interesse aqui não é doutrinário ou lógico, mas prático; o teste da veracidade do que se diz está em seu funcionamento na realidade da vida cotidiana.
Em segundo lugar, quanto ao aspecto formal da carta, Tiago apre­senta de certa forma um tom de sermão. Enquanto lê a carta, obser­ve os vários recursos retóricos que ele emprega, especialmente alguns que refletem a diatribe greco-romana (v. "Orientações para a leitura de Romanos", p. 376) — o tratamento direto ("meus [amados] irmãos", 14x), as perguntas retóricas (p. ex.,Tg 2.3-7,14,21; 3.11,12,13; 4.1,5) e o uso de um interlocutor imaginário (2.18-20; 4.,12,13,15). Assim, o que Tiago faz da tradição da sabedoria não tem qualidade proverbial, mas de sermão; ele espera persuadir os leitores, visando à mudança na maneira como o povo de Deus vive em comunidade uns com os outros.
Em terceiro lugar, não ceda ao hábito, o que é fácil nesse caso, de ler Tiago como se a carta se direcionasse a cristãos individuais e tratasse do relacionamento individual deles com Deus e com os outros. Nada poderia estar mais longe dos interesses de Tiago. Desde o início, sua paixão é pela vida na comunidade cristã. Embora seja verdade que cada um precisa assumir sua responsabilidade individual para que a comunidade seja saudável, o interesse da epístola não é tanto pela piedade pessoal quanto pela saúde das comunidades. Deixar de perceber esse aspecto é deixar de perceber o interesse que permeia essa carta do começo ao fim.
Finalmente, é preciso ler as seções sobre os ricos e os pobres com cuidado (1.9-11,27; 2.1-13; 4.13—5.6), já que não é fácil determinar se ambos os grupos aqui pertencem à comunidade cristã. Seja como for, Tiago está decididamente — assim como toda a Bíblia — do lado dos pobres. Os ricos são consistentemente censurados e julgados, não por causa de sua riqueza em si, mas porque ela os levou a viver sem le­var Deus em consideração e assim abusar dos desprovidos com quem Deus se importa.

UMA CAMINHADA POR TIAGO

1.1 - 18  Saudação e introdução aos temas da carta
Aqui Tiago introduz a maioria dos seus principais assuntos. Observe como, depois de uma típica saudação de carta (v. 1), ele passa imedia­tamente à questão das provações, exortando-os à alegria, porque as provações geram a perseverança e levam à maturidade (v. 2-4; intro­duzindo 5.7-11). Em seguida, ele os exorta a que orem por sabedoria (1.5; introduzindo 3.13-18), insistindo em que a oração precisa ser acompanhada pela fé para ser eficaz (1.6-8; introduzindo 5.13-18). Isso leva ao assunto principal do autor, a questão dos pobres, a quem oferece esperança, e dos ricos, que ele adverte (1.9-11; introduzindo 1.27—2.13; 4.13—5.6); observe aqui os ecos de Isaías 40.6-8, versícu­los que também estão num contexto de conforto aos exilados. Voltan­do à questão das provações e testes, ele observa que a provação pode passar à tentação (uma única palavra grega designa ambas as ideias), pela qual não se pode culpar a Deus (Tg 1.12-15), concluindo que Deus, antes, concede apenas boas dádivas, especialmente a dádiva de nos "ger[ar] pela palavra da verdade" (v. 16-18).

1.19 - 2.26  Colocando a fé em prática
Enquanto você lê essa seção, atente para como o seu conteúdo dá a ela alguma coesão. Começando com a raiva e com a língua, Tiago exorta os leitores a viver a palavra que eles ouvem, especialmente com respeito à língua e a ser caridosos para com os pobres (1.19-27). A caridade para com os pobres significa não mostrar favoritismo pelos ricos; fazer isso é pecado, c fazer distinção de pessoas — não demonstrar miseri­córdia - significa se colocar sob julgamento (2.1-13). Finalmente, ele ataca aqueles que entendem a fé como mero assentimento verbal às doutrinas nas quais se crê; falar sobre a fé sem se preocupar concreta­mente com os pobres — isto é, a fé sem ação — é o mesmo que estar morto (v. 14-26).

3.1 - 4.12  Discórdia na comunidade
Você pode reler 1.19-27 antes de ler essa seção. Aqui Tiago se volta à grande questão da discórdia nas comunidades cristãs, começando com o que se tornou sua exposição clássica sobre o uso e o abuso da língua (3.1-12); a língua é "um mal que não se pode conter; está cheia de ve­neno mortal" (v. 8). Você consegue se identificar com isso? Semelhan­temente à admoestação anterior contra "a fé sem obras", aqui ele está preocupado com a questão de a mesma língua ser usada para adorar a Deus e para amaldiçoar os outros. Isso por sua vez leva diretamente ao retorno do tema da sabedoria (3.13-18), o autor contrastando a sabedoria divina com a falsa e insistindo em que a verdadeira sabe­doria consiste em ser puro e amante da paz.
Observe que essas duas questões (a língua e a sabedoria) servem, juntas, para introduzir o tema crucial das discórdias na comunidade cristã (4.1-12). Tiago expõe, respectivamente, as raízes pecaminosas das discórdias (v. 1-3), sua natureza mundana (v. 4,5) e a necessidade da humildade (v. 6-10), retornando no final aos abusos da língua, que incluem o ato de julgar os outros (v. 11,12).

4.13 - 5.11  Aos ricos e aos pobres
Observe que essa é a terceira vez que Tiago trata da questão dos ricos e dos pobres, sugerindo que se trata de uma questão importante para o autor. Embora não possamos ter certeza, ele parece se dirigir primeiro aos ricos cristãos, que lidam com seus negócios de uma forma mundana (4.13-17). A isso se segue uma denúncia áspera dos ricos proprietários de terras (aparentemente não cristãos), que abusam dos seus trabalhadores, não pagando o que lhes devem (5.1-6).
Finalmente, voltando à questão das provações, provavelmente se dirigindo aos pobres em aflição, ele mais uma vez exorta à perseveran­ça (v. 7-11; cf. 1.3).

5.12 - 20  Exortações finais
As exortações finais parecem estar ligadas de maneira mais vaga aos temas que as precedem. O autor começa falando sobre os juramentos (v. 12), claramente ecoando o ensinamento de Jesus (Mt 5.33-37); ele então se volta à oração e à fé (Tg 5.13-18; cf. 1.6-8), demonstrando uma preocupação especial pelos pobres (os "doente[s]" nesse caso). Ele conclui com uma bênção sobre aqueles que reconduzem os desviados (5.19,20). Observe a ausência de qualquer conclusão típica de carta.


Tiago é a contraparte do Novo Testamento da tradição judaica de sabedoria, agora à luz dos ensinamentos de Jesus. Embora às vezes se leia Tiago em contraste com Paulo, na verdade ambos estão em perfeito acordo quanto à principal mensagem de Tiago ao longo da carta: a primeira coisa que se deve fazer com a fé é viver segundo ela (cf. Gl 5.6).

Extraído do livro "Como ler a Bíblia Livor por Livro", Gordon Fee e Douglas Stuart, Editora Vida Nova, págs. 472-476.

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